INVENÇÕES DE SI EM HISTÓRIAS DE AMOR
Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop
de NADIA NOGUEIRA
Páginas - 264
"Em seu livro demolidor sobre a cultura histórica do século XIX, mas nem por isso limitado àquele tempo, Nietzsche apresentou três motivações vitais básicas da busca pelo passado: o sentido do monumental, da grandeza dos fundadores; o apelo do antiquário, a sedução das ruínas; e o desejo crítico, a tentação de ser juiz. Destas três atitudes, a crítica é sem dúvida a que mais demarca uma ética profissional para os historiadores da atualidade. Ser historiador, acredita-se, é adotar uma visão crítica sobre o passado, denunciar as mazelas humanas, e neste mesmo passo erguer-se como voz solitária da justiça, num mundo dominado pela sordidez. Acontece que, freqüentemente, o senso crítico é entendido como algo alheio à atividade crítica, reflexiva, e o historiador se torna um porta-voz entristecido do ressentimento, anunciando aos tempos futuros as derrotas desde sempre necessárias, e muito humanas.
Começo esta resenha por este caminho porque o livro de Nadia Nogueira fere a sensibilidade ressentida do historiador profissional, e por isso, dentre outras coisas, merece ser lido com atenção. Trata-se de um trabalho sobre a felicidade, uma história de amor, e uma história de amor entre duas mulheres. Ou seja: a cada passo um desafio, ao mesmo tempo intelectual e afetivo. Encontrar as palavras certas, o modo de falar sobre o encontro entre Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares no Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960, enfrentando (e não evitando) as questões delicadas referentes ao amontoado de clichês que recobrem os “anos dourados”, ao exotismo presente na visão da poeta lírica norte-americana sobre os trópicos, às aproximações entre Lota e figuras de inegável autoritarismo político (o impagável Carlos Lacerda). E, claro, o intrincado problema do dinheiro, de uma felicidade comprada pelo preço de um refúgio, a casa em constante construção enquanto as duas viviam seu breve e intenso momento de alegria.
Depois de ler o livro podemos nos perguntar se dinheiro compra felicidade, esta questão aparentemente tão fútil, porque formulada nos termos de uma lição de moral que nos ensina que, pelo contrário, só há virtude na pobreza. Mas, no que se refere à felicidade, é preciso reconhecer que talvez o dinheiro ajude, principalmente se você precisar de um espaço próprio para viver o seu amor meio clandestino, ou se tiver que temperar a repulsa sentida pela família tradicional com algum tipo de aceitação social. Mas, como falar sobre isso sendo historiador? Como encarar os obstáculos estabelecidos por uma tradição que optou pela idealização da pobreza (em livros e teses, é claro)? É mesmo difícil admitir que, especialmente em casos como o da história de amor entre Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares, a felicidade é um privilégio. O grande interesse do livro de Nadia Nogueira é que nele questões como estas são explicitadas. Sentimos a dificuldade da elaboração da escrita do livro, acompanhando o trabalho de reflexão da autora.
Porém, no caso do livro, de que felicidade se trata? Certamente não a felicidade utilitarista, baseada na busca do conforto, da estabilidade de condomínio fechado, do cálculo amedrontado dos prazeres e das dores. Nadia Nogueira procura, em seu livro, a felicidade daqueles que fazem as coisas por inteiro, que conseguem, mesmo que por ALGUNS momentos, viver na potencialidade criadora do ser. Neste aspecto, o sentido trágico da história fica mesmo por conta de Lota, porque sua opção criadora a levou, inevitavelmente, ao encontro com a megalomania do poder, com o desejo de fazer da cidade um desdobramento de seu idílio pessoal, na mistura de jardim e praça pública que perfaria os seus projetos para o aterro do Flamengo. Projeto que, literalmente, a consumiu, segundo a análise de Nadia Nogueira.
A felicidade, neste sentido de plenitude, só poderia ser mesmo fugaz. Porque o refúgio da privacidade estava próximo demais da reclusão, do aprisionamento. Porque o amor não basta, além dele precisamos dos amigos, da cidade, da república. A ambigüidade do refúgio como prisão é paralela à da aceitação social do amor entre duas mulheres, uma vez que, em se tratando de duas artistas, e uma delas milionária, certas “excentricidades” seriam mais ou menos esperadas. Ambigüidade do Rio de Janeiro como sonho de um Brasil feliz, moderno e tropical, marcado pelo auto-exotismo, pela alegria turística. No sentido pleno do termo, a felicidade compartilhada por Lota e Bishop era utópica. Mas nem por isso inocente.
A leitura do livro de Nadia Nogueira inspira questões como estas. Ele foi elaborado como a história de um encontro, quase aquele “amor à última vista” de que falava Walter Benjamin. A autora nos conduz ao momento em que Bishop e Lota se encontraram, buscando entender por que este encontro foi tão marcante para as duas, tão criativo. O fim da história é melancólico, mas o livro não flerta com a facilidade das lamentações. Além disso, existem as aproximações teóricas, as questões de gênero (mais especificamente, o difícil limite entre o privado, o íntimo e o político), mas tudo tratado com leveza pela autora, uma vez que neste, como em todos os bons livros de história, a teoria está imersa na narrativa. "
Começo esta resenha por este caminho porque o livro de Nadia Nogueira fere a sensibilidade ressentida do historiador profissional, e por isso, dentre outras coisas, merece ser lido com atenção. Trata-se de um trabalho sobre a felicidade, uma história de amor, e uma história de amor entre duas mulheres. Ou seja: a cada passo um desafio, ao mesmo tempo intelectual e afetivo. Encontrar as palavras certas, o modo de falar sobre o encontro entre Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares no Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960, enfrentando (e não evitando) as questões delicadas referentes ao amontoado de clichês que recobrem os “anos dourados”, ao exotismo presente na visão da poeta lírica norte-americana sobre os trópicos, às aproximações entre Lota e figuras de inegável autoritarismo político (o impagável Carlos Lacerda). E, claro, o intrincado problema do dinheiro, de uma felicidade comprada pelo preço de um refúgio, a casa em constante construção enquanto as duas viviam seu breve e intenso momento de alegria.
Depois de ler o livro podemos nos perguntar se dinheiro compra felicidade, esta questão aparentemente tão fútil, porque formulada nos termos de uma lição de moral que nos ensina que, pelo contrário, só há virtude na pobreza. Mas, no que se refere à felicidade, é preciso reconhecer que talvez o dinheiro ajude, principalmente se você precisar de um espaço próprio para viver o seu amor meio clandestino, ou se tiver que temperar a repulsa sentida pela família tradicional com algum tipo de aceitação social. Mas, como falar sobre isso sendo historiador? Como encarar os obstáculos estabelecidos por uma tradição que optou pela idealização da pobreza (em livros e teses, é claro)? É mesmo difícil admitir que, especialmente em casos como o da história de amor entre Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares, a felicidade é um privilégio. O grande interesse do livro de Nadia Nogueira é que nele questões como estas são explicitadas. Sentimos a dificuldade da elaboração da escrita do livro, acompanhando o trabalho de reflexão da autora.
Porém, no caso do livro, de que felicidade se trata? Certamente não a felicidade utilitarista, baseada na busca do conforto, da estabilidade de condomínio fechado, do cálculo amedrontado dos prazeres e das dores. Nadia Nogueira procura, em seu livro, a felicidade daqueles que fazem as coisas por inteiro, que conseguem, mesmo que por ALGUNS momentos, viver na potencialidade criadora do ser. Neste aspecto, o sentido trágico da história fica mesmo por conta de Lota, porque sua opção criadora a levou, inevitavelmente, ao encontro com a megalomania do poder, com o desejo de fazer da cidade um desdobramento de seu idílio pessoal, na mistura de jardim e praça pública que perfaria os seus projetos para o aterro do Flamengo. Projeto que, literalmente, a consumiu, segundo a análise de Nadia Nogueira.
A felicidade, neste sentido de plenitude, só poderia ser mesmo fugaz. Porque o refúgio da privacidade estava próximo demais da reclusão, do aprisionamento. Porque o amor não basta, além dele precisamos dos amigos, da cidade, da república. A ambigüidade do refúgio como prisão é paralela à da aceitação social do amor entre duas mulheres, uma vez que, em se tratando de duas artistas, e uma delas milionária, certas “excentricidades” seriam mais ou menos esperadas. Ambigüidade do Rio de Janeiro como sonho de um Brasil feliz, moderno e tropical, marcado pelo auto-exotismo, pela alegria turística. No sentido pleno do termo, a felicidade compartilhada por Lota e Bishop era utópica. Mas nem por isso inocente.
A leitura do livro de Nadia Nogueira inspira questões como estas. Ele foi elaborado como a história de um encontro, quase aquele “amor à última vista” de que falava Walter Benjamin. A autora nos conduz ao momento em que Bishop e Lota se encontraram, buscando entender por que este encontro foi tão marcante para as duas, tão criativo. O fim da história é melancólico, mas o livro não flerta com a facilidade das lamentações. Além disso, existem as aproximações teóricas, as questões de gênero (mais especificamente, o difícil limite entre o privado, o íntimo e o político), mas tudo tratado com leveza pela autora, uma vez que neste, como em todos os bons livros de história, a teoria está imersa na narrativa. "
Daniel Faria
Prof. Dr. em História na Universidade Federal de Uberlândia.
Prof. Dr. em História na Universidade Federal de Uberlândia.
UM LANÇAMENTO DA
APICURI
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